sábado, 12 de novembro de 2011

Belovesick

Resquícios de madrugadas intermináveis banhadas a alcóol e perfumadas pela neblina que se desprendia dos cigarros acessos e espalhados pelo apartamento, se tornam parte de um passado distante que se equivale a distância que restou entre eu e você. Perdido no emaranhado dos lençóis, eu me reviro na cama, ouvindo o ressoar do telofone que insiste em permanecer inalcançável e a atrapalhar a minha insônia.
— Alô? — Do outro lado da linha, a sua voz embargada e mergulhada em um mar de soluços e sons psicodélicos me faz querer saltar da cama. Mas resisto, e não me permito um só movimento, nem pra cá, nem pra lá. Não permito um só efeito seu sobre o meu corpo exausto que ainda assim se agarra aos lençóis e, vitorioso, se mantém imóvel.
— Alô?! — A sua excitação “audível” me faz desanimar. Espero em silêncio, brincando de encarar o teto e de admirar o branco encardido deste — O que você tem feito? — A pergunta me assalta, e sem ânimo para resistir mais, salto da cama. Caminho pelo quarto como quem caminha em um campo de guerra, desviando de bombas que em meu caso são garrafas quebradas de uísque, e cinzeros fumegantes. (O que eu tenho feito além de pensar em você? Ou de estar sobrevivendo?)
— Eu tenho feito nada — Sussurro receoso, alcançando a janela e abrindo esta para aspirar um pouco da poluição que namora o céu acinzentado de São Paulo. O barulho agozinante de buzinas e freiadas me causa um desespero agradável, e eu tento me desvencilhar da sua voz que torna a surgir no telefone.
— E o que é você faz fazendo nada?
— O que é você pensa que é o nada? — Retruco, enquanto meus dedos ágeis palpeiam as jardineiras sem vida da janela em busca de algum maço perdido de cigarros. Sem ganhar tempo para resposta, sua voz me invade e me corrompe, e me faz querer voltar para cama para não sair de lá jamais.
— Eu desconheço o nada. Por que você — e um riso baixo da sua voz se mistura aos sons psicodélicos e aos urbanos que invandem meu apartamento — não me define o nada?
(O nada é o que restou da sua partida. É o cheiro tóxico das ruas que me sequestra a cada esquina, e me faz lembrar de você. É o gosto amargo e quente das bebidas que não consolam, e não preenchem o nada. O nada é um buraco negro que engole o tudo. O nada é o espaço vazio que restou na cama desde o nosso fim. O nada é você.)
— O nada é relativo demais, não há como definir nada. (Há.) — Encontro um maço esquecido no concreto frio da jardineira. Ignoro o silêncio que se propaga na ligação e apoio o telefone entre meu ombro e rosto, e com vestígios de desespero, travo uma batalha silenciosa com o isqueiro que cisma em não acender.
— Ele tem nome? Forma? Gosto, talvez? — Você insiste. A chama finalmente surge, mas não adere ao tabaco umidecido pelo sereno da noite. Desisto, voltando minha atenção para sua voz aveludada e descartando o cigarro que flutua em direção a rua. Meus olhos secos e vidrados encaram os ladrilhos frios e sujos da calçada, e minha mente se distância da razão e se entrega a insanidade, quase que por completo. Penso em desligar… Meus dedos rastejam em direção ao botão vermelho que tentador, pede por mim. (Por que você não pede por mim?)
— Tem o teu nome.
Então eu sou teu nada? — Você parece se orgulhar, e como se eu fosse uma folha de jornal, você me rasga, me tritura, me reduz a nada. E ser nada me faz feliz, pra ser nada com você.
Às vezes o nada é tudo.
(Silêncio)
Um suspiro longo ecooa pelo outro lado da linha. Um gemido curto se agarra a minha garganta do lado de cá. Me canso do cinza esbranquiçado das ruas paulistas e fecho as cortinas. Uma fresta intrusa de luz reflete sobre o espelho de centro da sala, iluminando as partículas de pó que viajam perdidas pelo espaço.
— Você já pensou em ser pó?
— Eu achei que fosse nada.
(E você é. Sendo nada você é até demais.)
Já pensou em ser minha? — Avisto uma garrafa de uísque esquecida em um canto qualquer. Agarro-a como se essa fosse um elixir da imortalidade, e degusto o líquido quente e viscoso que se prende em meu interior, torturando-o e ressecando-o. Outro silêncio se faz presente, e me esgano mentalmente. O fundo transparente da garrafa, misteriosamente, me faz enxergar seus olhos esmeraldas, e a bebida de repente adquire o gosto impróprio da sua boca.
— Já não fui isso? — Os sons psicodélicos desaparecem, e o som da tua respiração surge para roubar o som da minha, que se esvai. Desejo que ela se perca e desapareça, mas ela volta… Volta trazendo gemidos, suspiros, sussurros perdidos. Me envolvo na busca de outra garrafa, outro maço, outro pó qualquer abandonado em cacos de espelho. Meu desespero agradável começa a se tornar enlouquecedor.
(E porque deixou de ser, então?) — Você está aí? — Me entrego ao chão, sentando-me sobre o tapete de camurça bege, que com o tempo se tornou mostarda, e que apresenta uma detalhada mancha bôrdo, resultante de uma garrafa de vinho virada em meio a caríciais, toques, gestos e vozes que se perderam no tempo. Espero você desligar — Eu sei que você está aí — Quase posso ver um sorriso apreensivo se formar nos lábios avermelhados que outrora pertenciam aos meus.
— Por que está me ligando?
— Sonhei com a sua voz — Você responde depressa, e meus esforços para não me render aos efeitos que você me causa se esgotam por completo.
— E sentiu saudade?
— Da sua voz?
(Da voz. Do abraço. Do calor do meu corpo contra o seu. De mim.)
—  De tudo.
— Tudo é nada… Nada sou eu… Senti saudade de mim, e sabendo que você ainda me guarda dentro de você, tentei te achar para me reencontrar. Estúpido, não?
(Silêncio)
— Deixa eu te ouvir — Insiste… Não encontro mais minha voz. Reviro meu interior tentando ir contra suas palavras, mas elas viajam dentro de mim, e vejo você em todas as direções. Te encontro, mas não me acho. Encosto minha cabeça no sofá empoeirado e alcanço o controle da tv. Zapeio pelos canais sem prestar atenção nas imagens que se formam e desaparecem, desaparecem e se formam. Eu sinto sua falta. Assumo. Repito. Escuto meus pensamentos ecooarem dentro de minha cabeça e percorrerem minhas veias, se espalhando por minha corrente sanguínea e me envenenando por completo. Você murmura algo inaudível, e diz meu nome com aquela sua voz manhosa de quem quer algo, mas não sabe como conseguir. Eu gravo o agudo da sua voz dentro de mim, e esqueço um pouco mais de mim — Você acha que ainda há espaço para mim?
(Eu acho que há falta de espaço. Mas não para você… Para mim.)
— Sou eu quem precisa de espaço… — Você vai me dominando e eu vou abrindo mão de mim para aderir mais de você. Me apago um pouco dali, daqui… Me deixo envolver por você. Abro mão de um pensamento meu, de uma memória minha, e deixo você preencher esse vazios. Você se afasta e eu te re-invento dentro de mim. Recrio seus sorrisos, seus gestos, suas falas e manias. Procuro seu perfume que está impregnado em meus lençois, suas marcas vermelhas de batom que venceram o passar dos dias e continuam fixas no espelho quebrado do banheiro, onde ainda existem nossas iniciais escritas com aquela tinta preta que não desaparece.
— E você precisa de mais alguma coisa?
— Uma dose de esquecimento, e um comprimido de aminésia, por favor.
(Preciso de você.)
Você recua, ignora minhas palavras, e os sons psicodélicos voltam a surgir do outro lado da linha, ampliando meu estado de inércia. Não resta nada, se não o silêncio que se expande e se torna ensurdecedor e tangível. Depois de um suspiro longo, que se mistura a um som arranhando que escapa de minha garganta, você se despede com a voz seca e palavras vazias. O chiado do telefone te denuncia, e como se soubesse que aceitar romper com essa última conexão é inevitável, meu corpo cede e se despede. Os segundos se congelam, e me arrasto até a cama, fundindo-me a ela como no era no príncipio. A linha fica muda. Eu fico mudo.
(Silêncio. Silêncio. Silêncio. Nada.)

Nenhum comentário:

Postar um comentário